Com imagens que atravessam quase 40 anos de produção e carregam uma história extensa de diásporas e resistências, a mostra “Outros Navios: Fotografias de Eustáquio Neves” está em cartaz no Sesc Rio Preto. O projeto realiza uma retrospectiva da obra deste artista mineiro, químico de formação e descendente direto de pessoas negras escravizadas. “É um trabalho que capta e manipula imagens ligadas às relações étnico-raciais promovidas no passado e no presente, como a violência contra os corpos, a intolerância contra os ritos e a privação de direitos da população negra”, destaca o curador da mostra, Eder Chiodetto.
Desde os anos 1980, Neves constrói uma obra visual de forte impacto por meio de suas experimentações na fotografia analógica, utilizando conhecimentos adquiridos na sua formação como técnico em Química Industrial. Suas séries fotográficas, elaboradas a partir da junção de camadas pictóricas de forte simbolismo, discutem o lugar histórico da população negra, com os ecos da escravidão que se perpetuam e se desdobram no racismo estrutural intrínseco à sociedade brasileira. “Sua obra também reverencia as práticas culturais e ancestrais dos afrodescendentes, por vezes permeadas pelo sincretismo religioso, que resistiram no tempo apesar das tentativas históricas de apagamento”, completa Chiodetto.
A produção artística de Neves joga luz sobre injustiças e conquistas, silenciamentos e a pluralidade de expressões, muitas vezes apagadas na perspectiva oficial da história do Brasil. Ao realizar a exposição “Outros Navios: Fotografias de Eustáquio Neves”, o Sesc compreende que a ação cultural, ao tocar em aspectos cruciais de nossa formação, incluindo cicatrizes e potencialidades, é capaz de estimular o exercício de cidadania, reiterando seu caráter socioeducativo. Assim, ao difundir memórias comprometidas com uma visão mais equânime de sociedade, a instituição visa proporcionar a tomada de consciência de nossos papéis e responsabilidades diante de reparações históricas.
A mostra está subdividida em cinco salas. Nas salas 1 e 2, encontram-se séries que aludem às violências e silenciamentos perpetrados contra pessoas escravizadas em diversas situações, como os requisitos em anúncios de emprego ou a sexualização das mulheres negras. Na sala 3, está exposta a série “Máscara de Punição”, que aborda a violência do silenciamento das pessoas escravizadas, enquanto na sala 4 localizam-se séries que tematizam a resistência por meio de saberes ancestrais e rituais afro-brasileiros, além de suportes utilizados por Neves em seu processo de criação. Por fim, a sala 5 exibe uma videoinstalação criada a partir do material bruto de três vídeos do artista: “Post No Bill” (Nigéria, 2009 – 2022); “Bariga” (Nigéria, 2009 – 2022) e “Crispim – Encomendador de Almas” (Brasil, 2006 – 2022).
A mostra apresenta ainda cópias de filmes fotográficos, negativos, acetatos, matrizes, esboços, estudos de paleta de cor e texturas utilizados nos experimentos do artista em seu laboratório. Suas investigações incluem também desenhos, grafias, carimbos, recortes de documentos e jornais, entre outros. “A fotografia experimental no Brasil converge para a obra de Eustáquio Neves. Ele é um dos pioneiros em criar imbricações de linguagens da fotografia com pintura, textos e abrasões que visam gerar metáforas visuais sobre como as histórias oficiais são geradas em camadas simbólicas. Em seu laboratório, ele descama verdades impostas e nos revela labirintos por meio dos quais pontos de vistas sorrateiramente apagados vêm à tona”, comenta o curador.
Sobre o artista
José Eustáquio Neves de Paula (Juatuba, MG, 1955), é fotógrafo e artista visual. Constrói suas obras por meio de processos de experimentação com a linguagem da fotografia, utilizando camadas de sobreposições de imagens e procedimentos químicos. Suas narrativas discutem a sociedade e o lugar histórico da população negra como protagonista de suas práticas culturais, conferindo ao artista destaque dentro e fora do país. Forma-se em 1979 como técnico de química industrial, e, em 1984, encerra sua atuação na indústria e se debruça no estudo integral da fotografia de forma autodidata.
Seu conhecimento dos processos químicos lhe possibilita uma amplitude na manipulação e nos resultados das imagens. É no laboratório de revelação e de ampliação que Eustáquio Neves interfere manualmente nos negativos das fotografias, gerando diversos efeitos.
Atua como freelancer nas áreas de documentação e publicidade, ainda em 1984, e abre um pequeno estúdio fotográfico em Belo Horizonte, em 1987. Na década de 1990, ganha destaque no cenário nacional da fotografia, trazendo questões sociais, étnicas e culturais, que surgem da experiência proporcionada pela visitação à exposição “Registros da Minha Passagem Sobre a Terra”, do artista Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), no Museu de Arte da Pampulha (MAP), em 1989.
Entre 1994 e 1995, desenvolve a série “Arturos”, sobre um agrupamento familiar no município de Contagem, em Minas Gerais, caracterizado por ações de continuidade e respeito ao sagrado baseadas no sincretismo da religião católica com as religiões de matriz africana, em ocasião da comemoração da Festa de Nossa Senhora do Rosário, santa protetora de irmandades negras no Brasil colonial. Ainda em 1995, ganha o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia no Rio de Janeiro.
Destaca-se no ano de 1996 com a participação na Coleção Pirelli/Museu de Arte de São Paulo (Masp) de Fotografias. Participa da 6ª Bienal de Havana, em Cuba, em 1997, que descentraliza os grandes circuitos mundiais de exposições e abre espaço para artistas caribenhos e da América Latina. Ganha o Prêmio Nacional de Fotografia do Ministério da Cultura e Funarte, no Rio de Janeiro, no mesmo ano, e o Prêmio Especial Porto de Seguro de Fotografia, em São Paulo, em 2004. No ano seguinte publica seu primeiro livro, “Fotoportátil”, editado por Eder Chiodetto.
Eustáquio Neves segue sua produção discutindo a diáspora negra no Brasil, enquanto rememora e recria as histórias dessa descendência africana com base em aspectos que constituem seu cotidiano, enfatizando o Brasil como o país que tem a maior população negra fora da África, e no qual o racismo estrutural é realidade.
Serviço
Exposição ‘Outros Navios: Fotografias de Eustáquio Neves’
Até dia 3/12 – Terças a sextas, das 13h às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30.
Sesc Rio Preto (Av. Francisco Chagas de Oliveira, 1333)
Grátis
Fotos do lançamento da exposição: Priscila Beal