TERRITÓRIO CÊNICO
Artigo descreve uma experiência de arte e educação em Rio Preto
No Bem Pensando, desta semana, o ator e diretor na Cia. Cênica Fagner Rodrigues descreve a participação do projeto Território Cênico em São José do Rio Preto. Na ação, ao longo de seis meses, de 16 de maio a 16 de novembro, foram oferecidas oficinas de artesanato, Canto Popular e Teoria Musical, Cultura Digital, Dança Expressiva, Gastronomia, Iniciação ao Teatro, Percussão, Treinamento para um Corpo Cênico e Violão, com a finalidade de fomentar a arte e todas as suas vertente, uma experiência de arte e educação que Fagner relata com exclusividade para o #notíciasdobem.
Arte, território das lembranças
Como traduzir meu sentimento com a realização do projeto Território Cênico, que em seis meses de atividades ofereceu gratuitamente nove oficinas de arte à comunidade de Rio Preto? Pensei em um turbilhão de possibilidades e caminhos para tentar resumir essa primeira edição do projeto da Cia. Cênica. Cabeça em movimento, palavras soltas e o medo de cair no discurso de sempre. Até que percebi que estava ali na lembrança e é ali que vai ficar, não só para mim, mas para todos os participantes. Provavelmente poucos alunos das oficinas do projeto vão seguir a carreira artística, mas isso é o que menos importa. O que fica é o fazer, o aprendizado e a troca diária. O caminho percorrido é muito mais importante do que o ponto de chegada.
Um projeto com foco na arte não pode ter o produto artístico como elemento fundamental, ele é consequência. Olhando para o projeto, vejo suas múltiplas faces: homens, mulheres, adultos, jovens, crianças, idosos, brancos, negros, gordos, magros – aqui somos iguais, humanos e só. Nas aulas, alunos e professores sem hierarquias, todos com as mesmas obrigações e responsabilidades, caminhando juntos, ensinando e aprendendo simultaneamente com pluralidades de pensamentos.
E se isso se multiplicasse? Utópico? Sim, em um País onde 1,3 milhão de jovens de 15 a 17 anos abandonam a escola. Mais de 50 milhões de alunos matriculados na educação básica do País deveriam ter voltado a estudar no início deste ano. Porém, um a cada quatro alunos que iniciam o ensino fundamental no Brasil abandona a escola antes de completar a última série. Penso que a arte seria combustível para combater a evasão escolar. Se nossas crianças e adolescentes tivessem o contato adequado com a linguagem artística durante esse importante período de nossa vida, certamente cresceriam com um pensamento para além das disciplinas regulares.
Perguntaram-me: quer arte na educação para que todos sejam artistas? Não, eu quero para que todos sejam arteiros, donos de seu próprio pensamento critico. O pedreiro que já estudou canto, o advogado que já dançou, a jornalista que já pintou, a garçonete que já leu Nelson Rodrigues, a médica que toca violão – a profissão futura não importa, nunca será tarde para se fazer o que se tem vontade. Eu poderia ser jogador de futebol, mas sou ator, como poderia ser assaltante, traficante, ladrão, político corrupto, e não sou, e tenho certeza que não segui esse caminho devido à arte que entrou na minha vida ainda na escola.
Em tempos de projetos assustadores, de escolas sem partido e reformas no ensino com cortes de orçamentos que já são mínimos, falar de arte e educação parece coisa de outro mundo. Não é. Não pode ser.
A arte é um fazer, é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade humana, desde que conduzida a um fim, pode chamar-se artística.
A arte é produção, logo, supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmo do caos.
É difícil a tarefa de encontrar uma definição geral para a arte. Todas essas definições de arte envolvendo beleza, verdade, forma, expressão são sempre históricas, uma vez que estão ligadas a um universo de valores culturais. Cada cultura acaba criando a sua concepção de arte.
Parece-nos impossível uma definição geral e única que dê conta da própria universalidade da arte e de toda experiência artística em todos os tempos, porque a mesma exige uma contextualização no espaço e no tempo. Mas deixemos de explicações sobre a arte e vamos ao que me inspira arte.
A cantoria do meu avô com sua sanfona vermelha.
O circo que uma vez por ano armava sua lona no terreno da esquina.
A quermesse com o frango assado ganhado no bingo.
A goiabeira e a ansiedade de descobrir se o fruto era branco ou vermelho.
A festa do santo com fogueiras, rezas e as bandeiras coloridas.
A curva do rio e imaginando o que vinha depois dela.
O chá contra bronquite que a vó do vizinho me deu escondido de minha mãe e eu nunca soube o que tinha dentro, só sei que sarou.
O primeiro beijo com a menina do quarto ano e eu ainda estava no terceiro.
O cheiro das velas e das flores no velório da vó Luzia, realizado na sala de casa.
A cachorra Paquita e a confusão com a cabeça da leitoa assada: eu jurava que era a cadela que tinha ido pro forno.
O papagaio que contava as nossas travessuras no quintal enorme de terra vermelha na casa da vó Sanduca.
A pamonha com o milho que pegávamos na beira da estrada.
O cheiro do café torrado em casa e que eu era obrigado a moer manualmente.
A horta do quintal que todo dia alimentava a família.
O tombo de bicicleta que me fez quebrar o braço.
A Carla, minha primeira paixão, que se mudou pro sítio e eu nunca mais vi.
Minha tia que me prometia doces se não contasse que ela namorava um moço chamado Jesus na fonte da praça.
Esse é o meu território, são essas lembranças que compõem a minha formação e meu entendimento de vida, o meu traço cultural, minha raiz mais íntima. A cultura não meramente como linguagem artística, mas como espaço de memória e identidade. Após essa edição de oficinas do projeto Território Cênico, percebi mais uma vez que o fica são os valores que futuramente se tornarão lembranças e que são a minha arte.
Fagner Rodrigues – ator e diretor na Cia. Cênica e coordenador do projeto Território Cênico.
09/11/2016
09/11/2016 09:12