Hospital fechado guarda tesouro artístico ameaçado

exclusivo

Hospital fechado guarda tesouro artístico ameaçado

HospitalAs paredes de um hospital desativado na região de Rio Preto guardam um tesouro ameaçado pelo tempo e pelo abandono do poder público. O imóvel em questão é o da antiga Associação Beneficência Portuguesa de Olímpia e o tesouro que ele guarda não se mede pelo dinheiro, mas pelo seu valor artístico e cultural. São afrescos do artista impressionista paulistano Durval Pereira. Obras raras que até a família desconhecia o seu paradeiro e cuja história tem um toque de mistério: qual a ligação entre o autor e a cidade que motivou a criação desses painéis, há 65 anos?

Durval Pereira morreu no auge da carreira. Colecionou incontáveis prêmios aqui e principalmente fora do Brasil, onde desfrutava de grande reconhecimento. Sua morte, aos 63 anos, tem os contornos de um roteiro desses que apenas o destino é capaz de escrever com tanto esmero.

DurvalO ano era 1984. Durval Pereira estava em seu ateliê, imerso em seu universo marinho, inspiração suprema para suas telas impressionistas. O telefone toca e interrompe o momento da criação. Uma voz italianíssima avisa que ele fora o escolhido para receber o Prêmio Internacional La Madonnina de Milano, uma das maiores honrarias da Europa nas artes plásticas. E mais, que ele receberia o prêmio das mãos de dois ícones do cinema mundial, Gina Lollobrigida e Marcello Mastroianni, dos quais era fã ardoroso. A emoção explode nas veias do artista. Durval morre pouco depois, de infarto fulminante.

A reportagem conseguiu localizar um neto do artista que mora na Alemanha para reconectar passado e presente. O publicitário Eduardo Pereira, 37 anos, se dedica a resgatar o legado deixado pelo avô, reunindo telas, fotografias, depoimentos e histórias que vem montando feito um quebra-cabeças. Isso porque ele tinha apenas 4 anos quando Durval Pereira morreu. Avisado por telefone pela reportagem da localização dos afrescos, Eduardo não conteve a euforia.

“Não acredito! Como assim? Você está me dizendo que os afrescos que meu avô pintou estão no Estado de São Paulo, perto de São José do Rio Preto? Nós tínhamos ouvido falar desses afrescos, mas as pistas eram muito vagas e desencontradas. Seria em algum lugar do Brasil e em uma igreja, era tudo o que sabíamos! Não estou conseguindo acreditar”, afirmou o publicitário, com a voz tomada por forte emoção.

Segundo os levantamentos feitos por Eduardo junto aos familiares, a história do avô sempre caminhou de mãos dadas com as imagens. O cenário, a São Paulo dos anos 1930 e 1940. De origem humilde, fixou residência com a família no bairro da Mooca, de marcante influência europeia por conta do fluxo imigratório daquele início do século 20.

Adolescente, trabalhou em um estúdio e utilizava a bicicleta para entregar molduras de retratos em domicílio pelas ruas do tradicional bairro da Capital. Depois, aprendeu a retocar fotografias com José Picciochi. Gostou do ofício de aprimorar as fotos, de dar um acabamento artístico aos retratos. Fazia as vezes do Photoshop da época, “lapidando” imagens com lápis, ponta de pincel e tinta. Chegou até mesmo a trabalhar como retocador por conta própria.

NA CLARK, O “CLIQUE”

Mas foi em um ambiente aparentemente improvável que afloraria seu verdadeiro talento artístico. Durval foi trabalhar em uma fábrica de calçados como prancheiro. Era na histórica fábrica de calçados Clark (“O calçado que dura o dobro”), e sua vida nunca mais seria a mesma a partir dali.

Clark era uma grife inglesa que começou a atuar no Brasil em 1822, oferecendo sapatos importados. Instalou-se aqui no ano da Proclamação da Independência e Dom Pedro I recebeu a coroa, dizem, usando calçados Clark – seus prediletos. A primeira loja brasileira foi inaugurada no Rio de janeiro em 1830, na Rua do Ouvidor, juntamente com a primeira fábrica, aberta no endereço vizinho.

Há quase 200 anos no Brasil, a Clark produziu mais de 300 milhões de sapatos e foi a maior indústria de calçados do País, chegando a ter uma fábrica no Rio, três em São Paulo, um curtume em São José do Rio Preto e 42 lojas próprias espalhadas no Brasil. Cada fábrica tinha em média 430 operários e produzia 20 mil sapatos por mês. Chegou a fornecer calçados para todo o Exército e o Corpo de Bombeiros paulista.

Durval Pereira cumpria sua rotina de operário em uma das unidades da Clark na capital paulista. Certa vez, iniciaram uma reforma no vestiário dos funcionários. Ele não resistiu ao ver latas de tinta e pincéis à disposição e pintou um painel em uma das paredes. Ao tomar conhecimento da obra, o diretor mandou chamá-lo até a sua sala. Durval pensou seriamente que seria demitido. “Na verdade, o chefe havia se encantado pela pintura e disse que investiria para que o meu avô se dedicasse exclusivamente ao seu talento”, conta Eduardo.

HospitalO papel de mecenas exercido pelo chefão da Clark foi o empurrão decisivo para que Durval mergulhasse de vez nas artes plásticas. Em 1944, recebeu o Primeiro Prêmio de Menção Honrosa no Salão Paulista de Belas Artes. Em 1946, estudou artes plásticas na Associação Paulista de Belas Artes. Foi viver da pintura, para a qual se dedicaria até o dia daquela fatídica ligação telefônica.

Recebeu inúmeros prêmios e participou de muitas exposições coletivas, dentro e fora do Brasil. Em 1983, nos Estados Unidos, recebeu um troféu especial dos marchands como o maior impressionista dos tempos atuais. E é do início dos anos 80 a maioria das suas premiações internacionais, como a consagração do seu talento: na França, onde foi convidado pela direção do Museu dos Independentes de Paris a participar do livro Centenário do Salão, conquistou a grande medalha de ouro em uma coletiva na Associação Nacional de Paris e, no Salão Internacional de Ville, da Associação de Paris, ganhou o grande prêmio do público. Do Salão de Gênova, na Itália, obteve o grande prêmio Internacional e no Salão Cables Art Galery Miami, em Miami, Estados Unidos, faturou a medalha de ouro.

A França, sem dúvida, foi um dos lugares que mais reconheceram a qualidade do seu trabalho. Um ano antes de sua morte, em 1983, Durval Pereira representou o Brasil em Allinges, na Hivernale-Internationale de Arte Contemporânea, e ainda conquistaria mais uma grande medalha de ouro da Associação Nacional de Paris.

Isto sem falar das inúmeras premiações conquistadas e coletivas de que participou ao longo de quatro décadas dedicadas à pintura, em salões de artes Brasil afora. Salão Paulista de Belas Arte (várias vezes), 1º Salão Pan-Americano de Arte de Porto Alegre, Coletiva com Di Cavalcanti, Arlindo Mesquita e Inimá de Paula em Brasília, em 1968, Coletiva na Academia Valenciana de Letras (medalha de bronze) e Salão Nacional de Belas Artes, ambos no Rio de Janeiro, apenas para citar algumas. Isto sem mencionar os muitos salões dos quais participou no interior do País e as muitas exposições póstumas.

“Os mais renomados críticos internacionais consideram-no sempre com muito cuidado: afirmar algo a seu respeito pode ser, se feito de maneira taxativa, um erro. Durval põe muito mais de si, confere novos truques que transformam as velhas cores em novas cores e faz que os críticos sejam obrigados a emitir novas opiniões. Um paisagista único e um dos mais reconhecidos pintores brasileiros no exterior”, afirma o neto.

Ele conta que Durval Pereira tinha três paixões bem direcionadas. Uma era dona Ida, a esposa. As outras duas paixões influenciavam diretamente no seu ofício de pintor impressionista. Dois lugares, mais precisamente: Ouro Preto, cuja paisagem íngreme e pedregosa o inspirava, e o cenário litorâneo.

“Ouro Preto foi uma constante em sua vida. Ele mesmo admitiu que cada vez que lá foi, encontrou novos motivos e novas alegrias. Mas nunca deixou de lado suas marinhas, inconfundíveis pelos tons mesclados, fruto de verdadeira pesquisa, do profundo conhecimento e do verdadeiro dom do artista. Assim era o nosso Durval, que pintava obras tão realistas que pareciam em 3D, tamanha sua perfeição”, afirma o neto, que pretende vir ao Brasil, até Olímpia, para conhecer os afrescos e quem sabe ajudar em sua recuperação.

OBRA ‘OCULTA’ EM UM TRISTE LABIRINTO

Os caminhos que levam à sala onde estão os afrescos pintados por Durval Pereira, no antigo hospital da Sociedade Beneficência Portuguesa de Olímpia, são o próprio caminho da desolação. O que fora criado com fins beneméritos há 90 anos por prósperos cafeicultores portugueses radicados na cidade — “dar assistência de saúde a quem necessitasse” —, hoje não passa de um labirinto de corredores escuros que levam a salas vazias e empoeiradas. Um lugar onde os sinais do tempo e principalmente do descaso são implacáveis, presa fácil para depredações.

HospitalO cômodo que abriga as obras do artista impressionista destaca-se de todos os demais. É um espaço amplo, de assoalho de madeiras espessas. O trabalho de Durval Pereira é notável em suas cores e mínimos detalhes. A cruz de malta que pintou no teto seria uma espécie de “selo” de identidade, a não restar dúvidas da origem de seu autor. E os afrescos, oito telas ao todo, são todas da mais pura inspiração portuguesa.

Os painéis, que chegam a medir até 3,5 metros de largura por 3 de altura, levam a assinatura do artista e a mesma data (1/1/1952). E todos eles têm a mesma inspiração da terra de Camões e de Pessoa. E, acima de cada um, uma frase de um autor português. Para a pintura que representa a colheita da uva (um dos mais castigados pela infiltração), um verso do cancioneiro popular: “Os teus olhos são castanhas, o meu peito cangirão, Eu quisera ser o vinho, para encher-te o coração”.

Para o trabalhador a lavrar a terra com um carro-de-boi, uma declaração de amor ao rincão dos seus antepassados: “Meu Portugal, meu berço de inocente, / lisa estrada que andei débil infante”. É o trecho de abertura de um dos poemas mais famosos de poeta Tomás Ribeiro (1831-1901).

O humor satírico, presente no afresco que retrata um lauto jantar entre as autoridades religiosas, com muito vinho e faisão: “Em que pensa, cardeal? / – Em como é diferente o amor em Portugal”. Este, um pequeno trecho da obra “A Ceia dos Cardeais”, do teatrólogo lisboeta Júlio Dantas (1876-1962).

HospitalPara um homem que canta para sua amada, versos de Guerra Junqueiro (1850-1923): “Canta-me cantigas / Manso muito manso / Tristes muito tristes, / Como à noite o mar”. E a representação de uma esquadra de caravelas ganhou versos de Os Lusíadas, o clássico dos clássicos de Camões: “As armas e os barões assinalados, / Que da ocidental praia Lusitana”.

A falta de conservação do prédio custou caro às obras, atingidas pela umidade das infiltrações. Algumas estão mais intactas, como o do carro-de-boi e o das caravelas. Outras estão mais danificadas e uma das frases está parcialmente oculta pelas manchas de bolor. Recuperá-las não é uma tarefa fácil, uma vez que afrescos são uma técnica de pintura mural, executada sobre uma base de gesso ou cal ainda úmida – por isso o nome derivado da expressão italiana “fresco”, de mesmo significado em língua portuguesa – na qual o artista deve aplicar pigmentos puros diluídos somente em água.

Tristes constatações em um cenário a “respirar” o talento de Durval Pereira, que preocupou-se em harmonizar a sua obra com todo o ambiente. Emoldurou os afrescos na cor marrom e fez o mesmo com os batentes das janelas e portas, cujas folhas duplas foram pintadas no mesmo tom. Tudo para combinar com o marrom da madeira maciça da qual são feitas a mesa de reuniões e as nove cadeiras personalizadas com a insígnia da Sociedade Beneficência Portuguesa de Olímpia. Nove eram os assentos dos membros do alto conselho que decidiam os rumos do hospital e da associação.

A reportagem apurou que os afrescos de Durval Pereira estão avaliados em R$ 1 milhão. Apurou também que um laudo de vistoria do Poder Judiciário aponta que as obras precisam ser recuperadas e mantidas, mas por profissionais especializados. Há um valor estimado em R$ 350 mil para a realização desse serviço.

IMPASSE SEM FIM E O REI DO CAFÉ

Em pouco mais de 20 anos, tempo em que o prédio ficou sob a responsabilidade da Prefeitura de Olímpia, tudo o que representava vida e que fora criado com tal finalidade, foi reduzido a entulho. E o hospital, que ocupa uma área de cerca de 6 mil metros quadrados, tornou-se não mais que um grande depósito de materiais inservíveis. Este ano, mais de R$ 200 mil em medicamentos, parte deles ainda dentro do prazo de validade, e centenas de prontuários médicos foram encontrados jogados em seus porões.

O problema teve início há 25 anos. Em 1992, a Sociedade Beneficência Portuguesa achou por bem transferir a administração do hospital para o poder público municipal. O prédio foi cedido, então, à Prefeitura por meio de um contrato de comodato com prazo de 20 anos, conforme os documentos da época e de lei municipal específica, os quais estabeleciam a manutenção dos serviços. No entanto, apenas dois anos depois, aproximadamente, o hospital deixou de atender e passou a ser utilizado para fins administrativos pela Secretaria Municipal de Saúde. O que se seguiu a partir daí foram embates políticos e jurídicos, cuja única vítima é o próprio hospital, que requer obras urgentes em face da deterioração e de problemas estruturais visíveis.

PresidenteO atual presidente da Associação Beneficência Portuguesa, Luís Gustavo Alessi, disse que a Prefeitura negligenciou os cuidados com o imóvel ao longo desse tempo e que, após o fim do contrato de comodato, em 2012, não quis chegar a um acordo. Segundo ele, o hospital não poderia ser devolvido naquele estado, como previsto em ata, e que, por esse motivo, o caso foi parar na Justiça.

“Esse contrato de comodato ainda se estendeu por mais três anos e, em 2015, propusemos que a Prefeitura pagasse um aluguel pelo prédio, o que não foi aceito. Diante do impasse, começamos a nos mobilizar para reativar o hospital e já estávamos reunindo aportes particulares para isso, mas uma recente decisão judicial suspendeu os efeitos da nossa atual diretoria. Também somos prejudicados com essa situação, pois nosso intuito sempre foi o de preservar o ho,28/09/2017

28/09/2017 11:02

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *