CRÔNICA
Jornalista fala sobre sua primeira lição de reciclagem
As escolas empenham-se no ensino de reciclagem às crianças, como trato de respeito ao meio ambiente. É uma preocupação recente, mas lá atrás, na infância pobre nos esfarelados do tempo, recebi uma lição dessas. E não foi de professor. Foi de um amigo, então menino como eu. Apelido, Bola Sete. Usava uma muleta tosca de madeira por ter perdido meia perna sob as rodas de um trem.
Aliás, o mito da criança cordial era triturado pelos apelidos que recebíamos na infância. Nem se falava em bullyng. Ao lado de diminutivos familiares como Nino, Zinho, Tuca, Didi, os apelidos escrachavam a cor, as deficiências, o porte físico. Bola Sete, porque era negro, preto como a bola do jogo de sinuca. Mutuca, porque tinha pelos salientes na testa, semelhante à mosca de picada ardida. Boi do Gabriano, pelo topete esticado à frente da testa, como o chifre do animal que puxava a carroça-moenda do garapeiro Gabriano e a estacionava em frente à nossa escola. O boi tinha um chifre só. A mim, coube Saracura, por minhas pernas esqueléticas, longas, como as da ave do brejo.
O amigo mais admirado por nós era o Bola. A mãe havia sido cozinheira de seminário em Minas Gerais e, lá, garantira para ele estudo rigoroso com os padres. Por isso, conhecia matemática, ciências, história e geografia bem mais que nós. Evidentemente, conhecia a Bíblia e citava de memória passagens do Velho e do Novo Testamento que nos encantavam, em especial a do Eclesiastes: “Há um tempo oportuno a cada propósito debaixo do Sol. Tempo de plantar, tempo de colher, tempo de rir, tempo de chorar…” Mas, também, revelava sacanagens bíblicas, como a história de Onã, no Gênesis, que me permito não repetir aqui, diante de tantas leitoras de fino trato.
Bola era assim, alegre, espirituoso, otimista, generosamente superior. Por sermos todos pobres, ele era uma espécie de orgulho geral, porque tirava notas mais altas que as dos filhinhos de papai. Representava nossa “vitória” em uma tola espécie de revanche no jogo da vida, sempre tão desfavorável a nós.
Certa manhã, Bola passou em casa. Queria companhia para ir ao cemitério da nossa cidadezinha. “Vou pegar parafina no Cruzeiro”, explicou. Cruzeiro é aquele ponto dos antigos cemitérios onde frequentadores acendem velas para as almas.
Fomos. Bola Sete encheu um balde com parafina derretida. Contou-me que gostava de ler na cama, mas o pai não permitia que ficasse com a luz elétrica acesa, para não aumentar a conta no fim do mês. O jeito era fabricar velas em casa, reaproveitando a matéria-prima do cemitério. Derretia novamente a parafina, despejava-a em fôrmas cilíndricas de papelão, passava um fio de barbante grosso como pavio e esperava esfriar. Estava pronta a vela. Tinha aprendido no seminário. E nos ensinava.
Foi a primeira lição prática de reciclagem que recebi. Resgate tolo de uma infância pobre e feliz.
Ou será a idade a empurrar-me para temas sobre cemitério?
Texto do jornalista Júlio Cezar Garcia.
Foto: Ricardo Boni/ Notícias do Bem
11/05/2016
11/05/2016 00:26